domingo, 24 de janeiro de 2010

I know not what tomorrow will bing


O bilhete não era longo, por isso não demorou muito para que terminasse a sua leitura. Ficou parado alguns instantes na soleira da porta, ali mesmo onde havia encontrado essa pequena e curta nota de despedida. Leu-a ali mesmo, já pressentia o que estaria escrito, só não tinha idéia de como isso iria acontecer. Levantou-se em direção a cozinha. Não, não há nada que vá servir na geladeira, talvez se eu me sentar um pouco. Tudo isso com o bilhete ainda na mão. Não amassado como se esperaria de uma notícia, não, ainda estava ali, sem nenhuma dobra, como se não houvesse sido lido ainda, como se as palavras não tivessem tomado sentido ainda. Como se ela ainda pudesse voltar por aquela porta e dizer que na verdade ela o amava muito e que se ela teve uma noite com o Cláudio foi apenas para ter certeza de que ainda o amava, me amava. Voltou-se de novo para a geladeira mas dessa vez sua mão foi direto para a garrafa de uísque que havia. Pegou um copo de bica qualquer, jogou duas pedras de gelo e se serviu uma dose. Havia aprendido a tomar uísque com seu pai, havia começado a beber com seu pai, foi ele quem iniciou-o nessa arte quando mãe e mulher abandonaram pai e filho por um suposto artista de teatro, diretor, ator sei lá o que. Quando minha mãe nos abandonou, meu pai estava me ajudando com o vestibular, estavam e ajudando a entender Pessoa, ah Pessoa, o homem que pra fugir de seus problemas se multiplicava, se dividia. Sabe, filho, disse meu pai, preparando com a maior naturalidade duas doses de uísque, quando o Fernando Pessoa esteve internado no hospital, um dia antes de sua morte, sua útlima frase foi: I know not what tomorrow will bring. Estendeu-me o copo e sem nem saber o que devia fazer, nunca havia posto uma gota de alcóol na boca, viramos o copo ao mesmo tempo. Foi aí que começou, tudo começou e tudo terminou. Eu e meu pai, que tinhamos como laço o amor pela poesia, ele Pessoa e eu Rimbaud, após a noite que mamãe nos deixou mudamos nossos hábitos. Fizemos como Rimbaud e Pessoa: não haveria mais uma noite em que tomássemos uma, duas, três, quatro, quantas fossem as doses de uísque. Sentou-se na poltrona da sala onde costumava ler, cautelosamente, para não derramar a bebida, e sem esquecer de apoiá-la num descanso. O bilhete ainda na outra mão, esperando ser relido, querendo ser relido, querendo ter outras palavras. A garrafa!, pensou e levantou-se rapidamente, com o bilhete sempre na mão, e pescou de seu gabinete de licores a mesma garrafa de onde tinha posto sua dose, apoiou-a no descanso e sentou-se novamente, confortavelmente na poltrona. Estendeu o bilhete a sua vista, pegou seus óculos de leitura, que usava há vinte minutos, antes desse bilhete chegar. Luisa havia ido embora ontem, mas ainda restava-lhe uma esperança, algo ainda o mantinha nadando, lutando. Por isso, na hora da espera resolveu reler alguns contos de Tchekhov. Livro surrado de tanto que havia lido e relido, especialmente em momentos de crise, tristeza, para quem sabe, resgatar um pouco de esperança em seu peito. Botou os óculos e leu:

Já não consigo mais. Me desculpe, eu sei que você fez de tudo, mas não dá. Não aguento mais, não te aguento mais. Te amarei sempre, sempre. Mas não – adeus Fernando.

Boa sorte,
Cláudia.

Abaixou o bilhete e respirou fundo. Dessa vez não ficou tão imóvel quanto da primeira vez que leu, o bilhete não havia mudado, não havia uma declaração de amor, continuava a despedida. Soltou o suspiro. Virou o copo de uísque e estendeu o bilhete de novo a vista:

Já não consigo mais. Me desculpe, eu sei que você fez de tudo, mas não dá. Não aguento mais, não te aguento mais. Te amarei sempre, sempre. Mas não – adeus Fernando.

Boa sorte,
Cláudia.

Uma lágrima agora descia de seus olhos e a cada palavra que havia lido não encontrava o  amor, a palavra até estava ali, a expressão te amarei sempre, sempre. Mas e esse mmas matava, o matava, tirava lascas de sua pele. Encheu mais uma dose e entornou-a. Mais uma vez leu o bilhete:

Já não consigo mais. Me desculpe, eu sei que você fez de tudo, mas não dá. Não aguento mais, não te aguento mais. Te amarei sempre, sempre. Mas não – adeus Fernando.

Boa sorte,
Cláudia.

As lágrimas começaram a sair com mais força, mais furos haviam sido feitos por aquelas palavras, palavras dolorosas. Não vemos suas pontas agudas até o momento em que elas nos ferem, nos tiram sangue. Mais uma dose:

Já não consigo mais. Me desculpe, eu sei que você fez de tudo, mas não dá. Não aguento mais, não te aguento mais. Te amarei sempre, sempre. Mas não – adeus Fernando.

Boa sorte,
Cláudia.

Desatou em choro, não aguentou, seu corpo agoniado, doído, o bilhete finalmente não sobreviveu, amassou-o e jogou-o contra a parede. Mas era papel, não foi muito longe, nem teria forças para isso. Soluçava e gritava seu nome em desespero. Cláudia hic Cláuhicdia. Clááááááááááudia. Se debatia no chão, jogava seus punhos contra o chão. Dessa vez virou a garrafa, deixando-a rolar pelo piso em seguida.

Já não consigo mais. Me desculpe, eu sei que você fez de tudo, mas não dá. Não aguento mais, não te aguento mais. Te amarei sempre, sempre. Mas não – adeus Fernando.

Boa sorte,
Cláudia.

Não queria mais saber de amanhã.

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